- Ainda sem saber de nada?
- Ouça: vamos parar com isto! Já chega! Você vai à sua vida e eu à minha e não se fala mais disto!
- ISTO é a minha vida.
- Mas isto o quê???
- Tu.
- Que conversa é essa?
- A tua. A tua conversa, a tua ausência, o teu não sei.
- Mas que quer dizer com isso? Você fala, fala e eu não o entendo! Deixe-me ir embora!
- Mas eu deixo! E até deixo ir com todos esses buracos, essas dores que não são dores! Eu não tenho o poder de te reter.
- Algum poder você há-de ter! Ou eu já me tería ido embora!
- Obrigado, obrigado! Mas não sou tão influente quanto me julgas!
- Eu não o julgo! Pois se nem sei quem você É!
- E agora? Dói?
- Como assim?
- Aquela coisa que não sabes o que é... dói?
- Não sei que coisa é essa! Mas não me dói nada!
- Nada. Outra vez o nada. Recomeçamos. Recomecemos.
- Não vou recomeçar coisa nenhuma! Vou-me embora! E é já!
- O buraco é por si um conceito vazio. Uma coisa cheia de nada. Ora se é buraco não pode estar cheio. Então o nada não será o vazio. Certo?
- Tenho saudades dos meus, quero ir embora.
- Como estás?
- Não sei...
-Ah! Essas duas pequeninas palavras que nada têm que ver com o conhecimento!
- Não percebo o que quer dizer...
- E de novo!
- De novo?
- A junção da negação com o alcance do saber. Não sei. Como se de facto essa afirmação pudesse concluír o que não sabes ou, direi eu, o que temes saber e tornar um confronto entre ti e a tua racionalidade!
- Não sei o que está para aí a dizer... só sei que... que não sei.
- E não sabes o quê? O que é o quê dessa dúvida? O que tu és? Ou o que receias ver?
- Não sei...
- Novamente o não querer saber.
- Não sei, não sei, já lhe disse que não sei! Só sei que não sei o que sinto!
- Não?
- Não... acho que não... talvez uma coisa aqui dentro... qualquer coisa que não sei explicar...
- Dor?
- É dor mas não dói. E dói também sem saber onde... não sei.
- É uma falta? Uma ausência?
- É um buraco.
- Eu sei.
- O que é que tens?
- Não percebo, não entendo nada do que se está a passar.
- Elementar. Embora soubesses que isto iría acontecer achastes que a ti não te apanhava.
- O quê? Agora é que não percebi mesmo nada!
- Não te preocupes, o entendimento sobre o que te rodeia virá inexoravelmente e as respostas serão a cauda de toda a situação.
- Cauda? Que cauda?
- É uma forma de falar!
- Cada vez percebo menos! Sinto que já se passou muito tempo desde que aqui estou, lembro-me perfeitamente de me ter sentido mal, uma dor muito forte...
- Sim, sim, uma dormência no cotovelo, um formigueiro no peito, já sei, já sei!
- Parece que o incomodo!
- De modo algum. Mas começas a tornar-te repetitivo e temos que andar com isto para a frente.
- Isto?
- Sim, toda esta situação.
- Mas que situação? E a minha mulher? Falou-me de estarem conformados... com o quê, com quem?
- Contigo e com as suas novas vidas.
- Então? Zangado ainda?
- Ouça: eu dou-lhe o que quiser mas deixe-me ir embora. A minha mulher, os meus filhos, o meu patrão deve estar tudo doido à minha procura!
- Não. Eles sabem exactamente onde estás.
- Já percebi tudo. Você raptou-me e exigiu um preço para me soltar, não é? Pobre mulher! E os meus queridos filhos! Quanta ralação!
- Que imaginação!
- Fique sabendo que não vai conseguir nada! A minha mulher é uma mulher de fibra! Não se dobra! Ela há-de conseguir tirar-me daqui sem lhe pagar um tostão!
- Que coisa mais rebuscada!
- E já lhe disse que não tenho medo!
- Nem é para teres.
- ... isto não é um rapto?
- Não. Lamento informar-te que não é nada tão fantástico como imaginaste nem ninguém vem à tua procura para te libertar. Os teus sabem onde estás. E já se conformaram.
- Como te sentes?
- Fique sabendo que não falo mais consigo enquanto não me disser o seu nome!
- Por favor! Amuos? Ah!
- Já lhe disse!
- Olha: para começo de conversa resolvería bastante se me tratasses por tu.
- Pode falar para aí à vontadinha que eu não lhe digo nem mais uma palavra!!!
- Como queiras. Se não falares comigo também não conseguirás falar contigo mesmo. Mas tu é que sabes.
- Ah! Folgo em ver-te sentado!
- Que remédio! mas fique sabendo que estou de saída!
- Claro que estás!
- Então... posso ir?
- Naturalmente.
- Mas não consigo... que estranho... parece que alguma coisa me retém aqui, nem contra a minha vontade nem por obrigação... Quem é você?
- Mau! Voltamos ao mesmo?!
- Tenho a nitida sensação de já nos termos encontrado, só não me recordo onde... onde? onde?
- Com o tempo tudo se tornará mais claro.
- Será que andámos juntos na escola? parece-me ser da minha idade...
- É verdade.
- Então fomos colegas de escola? Como se chama?
- Em breve saberás o meu nome, lembrar-te-ás do meu nome de uma forma tão natural que acabarás por achar essa pergunta quase... ridicula, direi, desnecessária!
- O enjoo passou, não é verdade?
- Sim, sinto-me bastante melhor.
- Ah! Que bom!
- Vou aproveitar e acabar as coisas que tenho de fazer, trouxe trabalho do escritório para fazer em casa... e a seguir quero ver o jogo...
- Esquece! Isso está feito.
- Não me lembro que tenha terminado... aliás, senti-me mal recordo-me, quando peguei nos papéis... a casa de banho, lembro-me da casa de banho e ter frio, muito frio...
- O trabalho do escritório está feito, não tens de te preocupar com isso.
- Mas quem o fez?
- O teu colega.
- Quem? O Martins? Esse incompetente? Não pode ser!
- Ai pode, pode! A tua mulher levou-lhe a papelada e ele tratou de tudo.
- Não pode ser!
- Pode. E até vai ser promovido se queres saber...
- Não pode ser!
- Ah, pois pode! Tem trabalhado por ele e por ti e olha que não se sai nada mal!
- Não pode ser, não estamos a falar da mesma pessoa!
- Estamos. Sabes que a incompetência dos outros é um julgamento que medimos pela nossa própria conduta...
- Isso são tretas! O Martins É um incompetente!
- Pois que seja. Mas não está a ser avaliado segundo o teu juízo.
- Eu já lhe vou dizer!
- Tsss... Lamento. Não vais poder dizer-lhe.
- Ai vou sim! Quem é você para me dar ordens?
- Como te sentes?
- Mas porque raio está sempre a fazer-me essa pergunta?
- Porque me preocupo contigo!
- Como assim se nem o conheço? É médico? é isso... é médico, eu sei que que me senti mal, um formigueiro pelo braço acima...
- Médico? Nem pensar!
- Não?
- Não!
- Então? Mas quem é o senhor? ...Padre, é um padre, é um padre não é? Olhe que eu sou católico mas não professo, há muitos anos que não entro numa igreja, claro que tenho a minha fé...
- Deixa-te disso por favor!
- Mas só pode ser padre! Todo vestido de negro, camisa branca...
- Não insistas! Não sou padre!
- Então... Ai meu Deus! É de uma agência funerária! Quem o mandou vir? Morreu alguém?
- Morno, morno... Mas não sou cangalheiro.
- Por favor! Aconteceu alguma coisa? A minha mulher? Os meus filhos?
- Estão bem. Continuam preocupados mas estão bem de saúde.
- Quem é você? De repente pareceu-me reconhecê-lo.... Já trabalhámos juntos?
- Então?
- Estou atordoado... quero ir-me embora...
- Que obssessão!
- Quem é você afinal?
- Vem para junto de mim, senta-te.
- Não posso. Daqui a nada começa o jogo e eu ainda tenho coisas do escritório para acabar... não sei porque lhe dou estas explicacões, nem o conheço...
- Aos poucos lembras-te. Não há pressa. Senta-te, senta-te.
- Estou um pouco indisposto, desculpe... tenho mesmo que me sentar...
- Claro, claro, senta-te. É a adaptação, tudo a encaixar-se, as medidas a ajustarem-se aos tamanhos.
- Como?
- Nada, esquece, conversa técnica. Que hei-de fazer? Deformação profissional!
- Não sei se o percebo...
- Não te preocupes! Relaxa, quero-te calmo, relaxado, tranquilo...
- Acho que vou vomitar... tenho um nó no estomago...
- Não vais nada, é só uma sensação, isso já passa. Respira fundo, vá, fundo!
- Lembro-me que há bocado me custava a respirar... uma pressão aqui, mesmo no meio do peito e um aperto no pescoço, até senti as veias a dilatarem... engraçado... já não sinto nada disso...
- Que alivio, não é?!
- Que é que aconteceu?
- Como te sentes?
- Não o conheço... Onde estou?
- Como te sentes?
- Quem é o senhor? Nós conhecemo-nos?
- Conhecemo-nos.
- Conhecemo-nos? De onde? Não me lembro da sua cara...
- É normal. Daqui a nada já me reconheces.
- Onde é que eu estou?
- Em casa.
- Isto não é a minha casa! E quem é você? parece-me que não o conheço mesmo de parte alguma!!!
- Ah! A revolta. Tudo normal.
- Que conversa é essa? A minha mulher? Os meus filhos?
- Estão bem, estão bem... quer dizer, dadas as circunstâncias... um pouco preocupados, nada de mais.
- Que sitio é este onde estou? Quero ir-me embora! Exigo!
- Ahahaha!!!
- Está a ouvir-me?! Quero ir embora!
- Não te estou a prender. Mas temo que tal não seja possível. E por isso, evita debateres-te. Há vezes em que parece que dói... Não que eu o saiba por experiência pessoal mas já me informaram.
- Mas quem é você? Vai fazer-me mal? Não tenho medo! Não tenho medo!
- Claro que não, que disparate!
- Então deixe-me ir, prometo que o compensarei, que esqueço este bocado, esta coisa...
- Relaxa. E descansa. Tenho tempo e tu também.
15:12h Sábado: Sentiu um formigueiro no cotovelo, depois em todo o braço, de seguida um aperto no pescoço, falta de ar, tosse.

15:20h: Não percebe porque razão está deitado no chão da casa de banho. Tenta levantar-se.

15: 21h: Que estranha multidão é esta que entrou na sua casa de banho.

15:58h: Sente frio e o peito a arder.

16:15h: Os parentes mais próximos são chamados pelo médico de banco do hospital.

16:30h: Coma.