- Não tenho relógio, o meu relógio?
- Não precisas.
- Foram os meus colegas que mo ofereceram. Pelos vinte anos de serviço. Não é para qualquer um!
- Não.
- Não acredita? Fizeram um jantar e ofereceram-mo! Em reconhecimento do meu...
- Não sejas tonto! Fizeram a ti e a todos os que atingiram os vinte anos de serviço! Não tem nada a ver com mérito! Tu também chegaste a ir ao jantar de outros que estiveram nessa situação!
- Sim... Mas não é a mesma coisa...
- Claro que é! Também cochichaste! Também falaste mal do homenageado! Também contribuíste para o relógio de marca duvidosa e aplaudiste e gozaste! Ou não foi?
- Não foi como está a dizer! Quem o ouvir, há-de entender que eu não fui respeitoso e isso...
- E isso é tudo verdade, meu caro!
- Não é verdade, porque diz essas coisas! Você não me conhece, não lhe admito!
- Ohhh vá lá, admite. Admite que no fundo és um sacana gordo e balofo, invejoso, cobarde e quando sentes as costas apoiadas gostas de troçar e até humilhar se a situação te for favorável!
- Não é verdade, não é verdade...
- Será que vejo lágrimas? Arrependimento? Não. Fingimento, isso sim. Queres que eu me cale e usas dessas manhas. Desde criança que o fazes. A tua mãe derretía-se toda com isso.
- Porque gritou?
- Chega!
- Se é por causa do preço da consulta, eu posso pagar!
- Para ti tudo se resume a isso, não é?!
- A isso?  A isso o quê?!
- O comprar! Toma lá o dinheirinho que eu tenho e compro! Quanto é, Sr. Dr. ??? Eu pago a consultazinha... Ora! Que comportamento burguês!
- Não estou a perceber!
- O teu mal é esse! Nunca percebes nada! As coisas passam à tua frente e tu não as entendes! Porque pensas que estás aqui?
- Isso gostava eu de saber!
- Porque nunca percebeste nada de nada! A vida passou-te debaixo do nariz e tu nem a cheiraste!
- A vida passou-te debaixo do nariz e tu nem a cheiraste...
- E não repitas o que eu digo! Não te atrevas!
- Cada vez percebo menos! Só quero que me deixe ir, o Senhor está aborrecido comigo...
- Podes crer! Tens-me dado trabalho para a eternidade!
- Mas qual é o meu papel nisto tudo? Vim parar aqui, diz-me que não fui raptado, não há portas para saír, que horas são isto? A minha familia está raladíssima à minha procura de certeza!
- É tarde, muito tarde, já devíamos ter passado este bocado há imenso tempo mas tu és de compreensão lenta e enquanto não atingires não vamos a lado nenhum!
 
- É médico? a camisa branca e tal... e depois do que acabou de dizer, agora não tenho dúvidas.
- E tal! Hum... posso ser considerado como um médico, creio que sim, creio que se pode ver dessa forma, se ficas confortável com essa designação, para mim não tem qualquer problema.
- Sabe, aproveito para lhe falar de uma coisinha de nada que me tem vindo a incomodar...
- Tens a certeza?
- Desculpe?
- Tens a certeza que ainda te incomoda?
- Sim, é um prurido atrás da orelha, um liquidozinho que me dá comichão e arde. Se o Dr. pudesse ver... eu agradecía...
- Ora deixa ver.Aproxima-te. VAIS CHAMAR-ME DOUTOR É NO INFERNO!!!
 
- Não existem portas e no entanto, eis-nos. Um passe de mágica! Acreditas em magia?
- Gosto de ver, mas acreditar... acho que não, nunca pensei nisso.
- Em que é que tu pensas?
- Na minha mulher e nos meus filhos...
- Ah que enjoo... vamos, desenvolve, mais, mais!
- No meu emprego...
- Sim, mais, mais!
- No Martins, no que ele faz mal e no que eu faço bem...
- Vocês não fazíam a mesma coisa?
- Sim, quero dizer, não, eu tenho mais responsabilidades...
- Sério?
- Bem, quer dizer, a mim dão-me sempre trabalhos mais difíceis, sabem da minha competência
- E da dele, não sabem? É isso que me estás a dizer?
- Sim, não, o que quero dizer é que eu sou mais capacitado
- Para quê? Mais capacitado para quê? Para o Martins ser promovido? Para trazeres trabalho para casa porque não foste capaz de o fazer no escritório? Que andaste a fazer nas horas de trabalho?
- Eu? a trabalhar!
- De certeza?
- Sim, sim, de certeza!
- Então porque não tinhas o trabalho acabado quando te deu o ataque?
- Eu, não sei... estou a sentir-me mal, por favor, acho que me vai dar outra vez...
- Isso é impossível, meu caro. Nunca mais te dará coisíssima nenhuma, garanto.
 
- Bem, vou indo se não se importa...
- Não me importo nada.
- Pode dizer-me onde é a saída? Não vejo nenhuma porta...
- Não há portas.
- Obrigado.
- Já pensaste como vais saír sem portas?
- Não. Mas deve haver uma maneira, se estamos os dois cá dentro, é porque entrámos, não é?
- Lindo menino!
 
- Está zangado comigo?
- Que disparate!
- É que veja: não consigo perceber a minha situação. Que quer de mim, afinal?
- Eu, nada. Deves colocar a questão na inversa. Em que posso ser-te útil?
- Não percebo...
- Enervas-me, sinceramente. E olha que é preciso muito para tal. Mas tu ultrapassas os limites, caramba!
- Afinal está zangado...
- Muito em breve vou ficar e vou atirar-te ao inferno, se queres saber...
- Credo! Também não é preciso ver as coisas dessa maneira... Já pedi desculpa, que posso fazer?! Fiquei confuso, agitado! O Senhor sabe como é! Deve ter familia, mulher, filhos, essas coisas! Quando nos tocam na familia, é um Deus nos acuda!
- Tu cala-te!!!
- Ora está a ver?! Não é o que eu digo? Eu até rezei para me segurar!
- Cala-te, cala-te! Não digas mais nada!
- Ah! O senhor sabe, já deve ter passado por experiência igual, não é?
- Mas que fiz eu para merecer este homem???
 
- Que fazes? Porque tanto andas de um lado para o outro? Pára com isso, vou ficar tonto ou até enjoado.
- Não posso ficar quieto, tenho de me movimentar, já o vi em diversas séries, quando alguém está em cativeiro deve manter-se activo para que o corpo e o cérebro não fiquem estagnados!
- Dá para perceber que viste muitos filmes, efectivamente.
- Com este pequeno exercicio, daqui a pouco vou recordar-me de que lado a minha esposa colocava o meu lenço branco.
- Eu posso dizer-te onde ela punha o lenço.
- Como? A sério? O Senhor sabe disso? Mas... Como é que o Senhor sabe disso? Agora vai ter de me explicar!
- Bom, pelo menos paraste as andanças de lá para cá, que coisa aborrecida e inútil. Senta-te. Vamos conversar.
- Não me sento, não senhor! O Senhor deve-me uma explicação! Eu bem me quería parecer que o conhecía de qualquer lado! Você deve ter andado a rondar a minha esposa, não foi? Confesse! Assuma-se! Seja um homem e diga a verdade na minha cara!
- Queres saber onde ela punha o lenço ou não?
- Levante-se dessa cadeira para eu lhe partir a tromba seu estafermo!
- Se não estivesses na situação em que estás ía dizer-te para teres cuidado, pois gordo e fora de forma, és um sério candidato a ter um enfarte... Mas tu é que sabes.
- Levante-se! Venha! Confesse que atentou à honra de minha esposa!
- És patético. E gordo. Na verdade, balofo e sem interesse. E a tua mulher nunca te traíu nos anos em que teve de te suportar a flatulência e os gases. Aguentou. Sempre a pôr o lencinho branco no bolso de fora do lado esquerdo do casaco.

- Estás mais calmo? Prometes que não choramingas mais? Assoa-te anda, é um desconsolo ver-te nessa figura.
- Desculpe. Não tenho lenço... por acaso o Senhor não tem um...
- Et voilá meu caro! É só desejares e eu arranjo. A única coisa que me escasseia é pachorra para seguir com isto...
- Como?
- Nada, nada, limpa o nariz e avancemos!
- Obrigado, obrigado. Não sei onde deixei o meu lenço, habitualmente a minha esposa coloca-me um lenço branco no bolso de fora do casaco, do lado... não me lembro se é do lado esquerdo ou do lado direito... é do lado direito! estou certo que é do lado... bom, não estou muito certo... porque será que não me lembro?
- Ora ainda bem! Finalmente! Sabes porque é que não te lembras?
- Tenho a certeza que se me der uns minutos vou recordar-me! É desta confusão toda, saí da minha rotina, bem vê, qualquer um ficaría desorientado, até o Senhor!
- Ah! EU??? Fazes-me rir! E olha que isso já não acontece... deixa cá ver... hum, não interessa!
- Porque carga d'água não me recordo de que lado é que ela enfia o maldito lenço?!
- A praquejar?! Terei ouvido música?
- Como estamos?
- Como estamos???
- AH! Ouço um eco! Depois do teu brilhante desempenho nas artes vocais, surpreendes-me com um eco! Confesso que esperava mais alguma coisa!
- Não entendo...
- Isto está a ficar aborrecido...
- Quando é que acha que posso ir embora?
- Chato, mesmo.
- É que não vejo o objectivo de me manter aqui, sinceramente...
- Dos últimos, és mesmo o maior chato que me calhou, uma tremenda pepineira...
- Ah! Já sei!
- Finalmente! Um rasgo de qualquer coisa! Vejo que há esperança!Animo-me!!!
- Isto é um rapto e você quer dinheiro! Pois fique sabendo,
- Oh NÃAAAAAAAO!!!
- Meu Deus! Não me faça mal por favor! Não me faça mal, tenho mulher e filhos, não me faça mal!
- Por favor...
- Pára com isso, enfadas-me, não tenho o dia todo, estou saturado até à ponta dos cascos e não te vou fazer mal. Quanto à mulher e filhos, já era. Está na altura de te actualizares. Nunca mais lá chegas por ti, és lento, lento, funcionariozinho de meia-tijela, são os piores, que castigo...
- Folgo em encontrar-te mais bem disposto. Cantarolas...
- Não!
- Não?! Ía jurar que sim, pareceu mesmo que de repente entoavas uma música...
- Não, não é bem uma música...
- Então? Deixas-me curioso!
- Quando é que posso ir embora?
- Que obssessão!
- Quando, quando???
- Queres ir? VAI!
- Eu não aguento mais, por favor...
- Também eu, já quase não te aguento. Mas é serviço e tenho que te gramar. Como és dificil...
- Serviço? O meu serviço...
- De novo essa conversa, repetições, repetições, repetições!
- Quero ir embora, embora, será que não percebe?!
- TU é que não percebes. Aliás... és bastante ignorante...
- Acho que estou a enlouquecer...
- Anda, deixa-te disso! Canta lá a tua música, sempre é diferente...
- A música... como são as músicas?
- Som, tom, ritmo, umas palavrinhas, lálálá?
- Não... não é uma música... é uma coisa de crianças, qualquer coisa parecida com uma ladainha, uma oração...
- Oração?
- Não é uma música, não é... eu quero lembrar-me... Tão-Badalão-Cabeça-de-cão...
- Ainda sem saber de nada?
- Ouça: vamos parar com isto! Já chega! Você vai à sua vida e eu à minha e não se fala mais disto!
- ISTO é a minha vida.
- Mas isto o quê???
- Tu.
- Que conversa é essa?
- A tua. A tua conversa, a tua ausência, o teu não sei.
- Mas que quer dizer com isso? Você fala, fala e eu não o entendo! Deixe-me ir embora!
- Mas eu deixo! E até deixo ir com todos esses buracos, essas dores que não são dores! Eu não tenho o poder de te reter.
- Algum poder você há-de ter! Ou eu já me tería ido embora!
- Obrigado, obrigado! Mas não sou tão influente quanto me julgas!
- Eu não o julgo! Pois se nem sei quem você É!
- E agora? Dói?
- Como assim?
- Aquela coisa que não sabes o que é... dói?
- Não sei que coisa é essa! Mas não me dói nada!
- Nada. Outra vez o nada. Recomeçamos. Recomecemos.
- Não vou recomeçar coisa nenhuma! Vou-me embora! E é já!
- O buraco é por si um conceito vazio. Uma coisa cheia de nada. Ora se é buraco não pode estar cheio. Então o nada não será o vazio. Certo?
- Tenho saudades dos meus, quero ir embora.
- Como estás?
- Não sei...
-Ah! Essas duas pequeninas palavras que nada têm que ver com o conhecimento!
- Não percebo o que quer dizer...
- E de novo!
- De novo?
- A junção da negação com o alcance do saber. Não sei. Como se de facto essa afirmação pudesse concluír o que não sabes ou, direi eu, o que temes saber e tornar um confronto entre ti e a tua racionalidade!
- Não sei o que está para aí a dizer... só sei que... que não sei.
- E não sabes o quê? O que é o quê dessa dúvida? O que tu és? Ou o que receias ver?
- Não sei...
- Novamente o não querer saber.
- Não sei, não sei, já lhe disse que não sei! Só sei que não sei o que sinto!
- Não?
- Não... acho que não... talvez uma coisa aqui dentro... qualquer coisa que não sei explicar...
- Dor?
- É dor mas não dói. E dói também sem saber onde... não sei.
- É uma falta? Uma ausência?
- É um buraco.
- Eu sei.
- O que é que tens?
- Não percebo, não entendo nada do que se está a passar.
- Elementar. Embora soubesses que isto iría acontecer achastes que a ti não te apanhava.
- O quê? Agora é que não percebi mesmo nada!
- Não te preocupes, o entendimento sobre o que te rodeia virá inexoravelmente e as respostas serão a cauda de toda a situação.
- Cauda? Que cauda?
- É uma forma de falar!
- Cada vez percebo menos! Sinto que já se passou muito tempo desde que aqui estou, lembro-me perfeitamente de me ter sentido mal, uma dor muito forte...
- Sim, sim, uma dormência no cotovelo, um formigueiro no peito, já sei, já sei!
- Parece que o incomodo!
- De modo algum. Mas começas a tornar-te repetitivo e temos que andar com isto para a frente.
- Isto?
- Sim, toda esta situação.
- Mas que situação? E a minha mulher? Falou-me de estarem conformados... com o quê, com quem?
- Contigo e com as suas novas vidas.
- Então? Zangado ainda?
- Ouça: eu dou-lhe o que quiser mas deixe-me ir embora. A minha mulher, os meus filhos, o meu patrão deve estar tudo doido à minha procura!
- Não. Eles sabem exactamente onde estás.
- Já percebi tudo. Você raptou-me e exigiu um preço para me soltar, não é? Pobre mulher! E os meus queridos filhos! Quanta ralação!
- Que imaginação!
- Fique sabendo que não vai conseguir nada! A minha mulher é uma mulher de fibra! Não se dobra! Ela há-de conseguir tirar-me daqui sem lhe pagar um tostão!
- Que coisa mais rebuscada!
- E já lhe disse que não tenho medo!
- Nem é para teres.
- ... isto não é um rapto?
- Não. Lamento informar-te que não é nada tão fantástico como imaginaste nem ninguém vem à tua procura para te libertar. Os teus sabem onde estás. E já se conformaram.
- Como te sentes?
- Fique sabendo que não falo mais consigo enquanto não me disser o seu nome!
- Por favor! Amuos? Ah!
- Já lhe disse!
- Olha: para começo de conversa resolvería bastante se me tratasses por tu.
- Pode falar para aí à vontadinha que eu não lhe digo nem mais uma palavra!!!
- Como queiras. Se não falares comigo também não conseguirás falar contigo mesmo. Mas tu é que sabes.
- Ah! Folgo em ver-te sentado!
- Que remédio! mas fique sabendo que estou de saída!
- Claro que estás!
- Então... posso ir?
- Naturalmente.
- Mas não consigo... que estranho... parece que alguma coisa me retém aqui, nem contra a minha vontade nem por obrigação... Quem é você?
- Mau! Voltamos ao mesmo?!
- Tenho a nitida sensação de já nos termos encontrado, só não me recordo onde... onde? onde?
- Com o tempo tudo se tornará mais claro.
- Será que andámos juntos na escola? parece-me ser da minha idade...
- É verdade.
- Então fomos colegas de escola? Como se chama?
- Em breve saberás o meu nome, lembrar-te-ás do meu nome de uma forma tão natural que acabarás por achar essa pergunta quase... ridicula, direi, desnecessária!
- O enjoo passou, não é verdade?
- Sim, sinto-me bastante melhor.
- Ah! Que bom!
- Vou aproveitar e acabar as coisas que tenho de fazer, trouxe trabalho do escritório para fazer em casa... e a seguir quero ver o jogo...
- Esquece! Isso está feito.
- Não me lembro que tenha terminado... aliás, senti-me mal recordo-me, quando peguei nos papéis... a casa de banho, lembro-me da casa de banho e ter frio, muito frio...
- O trabalho do escritório está feito, não tens de te preocupar com isso.
- Mas quem o fez?
- O teu colega.
- Quem? O Martins? Esse incompetente? Não pode ser!
- Ai pode, pode! A tua mulher levou-lhe a papelada e ele tratou de tudo.
- Não pode ser!
- Pode. E até vai ser promovido se queres saber...
- Não pode ser!
- Ah, pois pode! Tem trabalhado por ele e por ti e olha que não se sai nada mal!
- Não pode ser, não estamos a falar da mesma pessoa!
- Estamos. Sabes que a incompetência dos outros é um julgamento que medimos pela nossa própria conduta...
- Isso são tretas! O Martins É um incompetente!
- Pois que seja. Mas não está a ser avaliado segundo o teu juízo.
- Eu já lhe vou dizer!
- Tsss... Lamento. Não vais poder dizer-lhe.
- Ai vou sim! Quem é você para me dar ordens?
- Como te sentes?
- Mas porque raio está sempre a fazer-me essa pergunta?
- Porque me preocupo contigo!
- Como assim se nem o conheço? É médico? é isso... é médico, eu sei que que me senti mal, um formigueiro pelo braço acima...
- Médico? Nem pensar!
- Não?
- Não!
- Então? Mas quem é o senhor? ...Padre, é um padre, é um padre não é? Olhe que eu sou católico mas não professo, há muitos anos que não entro numa igreja, claro que tenho a minha fé...
- Deixa-te disso por favor!
- Mas só pode ser padre! Todo vestido de negro, camisa branca...
- Não insistas! Não sou padre!
- Então... Ai meu Deus! É de uma agência funerária! Quem o mandou vir? Morreu alguém?
- Morno, morno... Mas não sou cangalheiro.
- Por favor! Aconteceu alguma coisa? A minha mulher? Os meus filhos?
- Estão bem. Continuam preocupados mas estão bem de saúde.
- Quem é você? De repente pareceu-me reconhecê-lo.... Já trabalhámos juntos?
- Então?
- Estou atordoado... quero ir-me embora...
- Que obssessão!
- Quem é você afinal?
- Vem para junto de mim, senta-te.
- Não posso. Daqui a nada começa o jogo e eu ainda tenho coisas do escritório para acabar... não sei porque lhe dou estas explicacões, nem o conheço...
- Aos poucos lembras-te. Não há pressa. Senta-te, senta-te.
- Estou um pouco indisposto, desculpe... tenho mesmo que me sentar...
- Claro, claro, senta-te. É a adaptação, tudo a encaixar-se, as medidas a ajustarem-se aos tamanhos.
- Como?
- Nada, esquece, conversa técnica. Que hei-de fazer? Deformação profissional!
- Não sei se o percebo...
- Não te preocupes! Relaxa, quero-te calmo, relaxado, tranquilo...
- Acho que vou vomitar... tenho um nó no estomago...
- Não vais nada, é só uma sensação, isso já passa. Respira fundo, vá, fundo!
- Lembro-me que há bocado me custava a respirar... uma pressão aqui, mesmo no meio do peito e um aperto no pescoço, até senti as veias a dilatarem... engraçado... já não sinto nada disso...
- Que alivio, não é?!
- Que é que aconteceu?
- Como te sentes?
- Não o conheço... Onde estou?
- Como te sentes?
- Quem é o senhor? Nós conhecemo-nos?
- Conhecemo-nos.
- Conhecemo-nos? De onde? Não me lembro da sua cara...
- É normal. Daqui a nada já me reconheces.
- Onde é que eu estou?
- Em casa.
- Isto não é a minha casa! E quem é você? parece-me que não o conheço mesmo de parte alguma!!!
- Ah! A revolta. Tudo normal.
- Que conversa é essa? A minha mulher? Os meus filhos?
- Estão bem, estão bem... quer dizer, dadas as circunstâncias... um pouco preocupados, nada de mais.
- Que sitio é este onde estou? Quero ir-me embora! Exigo!
- Ahahaha!!!
- Está a ouvir-me?! Quero ir embora!
- Não te estou a prender. Mas temo que tal não seja possível. E por isso, evita debateres-te. Há vezes em que parece que dói... Não que eu o saiba por experiência pessoal mas já me informaram.
- Mas quem é você? Vai fazer-me mal? Não tenho medo! Não tenho medo!
- Claro que não, que disparate!
- Então deixe-me ir, prometo que o compensarei, que esqueço este bocado, esta coisa...
- Relaxa. E descansa. Tenho tempo e tu também.
15:12h Sábado: Sentiu um formigueiro no cotovelo, depois em todo o braço, de seguida um aperto no pescoço, falta de ar, tosse.

15:20h: Não percebe porque razão está deitado no chão da casa de banho. Tenta levantar-se.

15: 21h: Que estranha multidão é esta que entrou na sua casa de banho.

15:58h: Sente frio e o peito a arder.

16:15h: Os parentes mais próximos são chamados pelo médico de banco do hospital.

16:30h: Coma.